quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Amarga derrota

Já escrevi algumas vezes neste blog sobre competir. E, nesses textos, falei de passagem sobre perder. De passagem mesmo porque desde que comecei a competir na vida adulta não passei por nada que pudesse lembrar uma derrota. Escrevo isso sem nenhuma arrogância. É verdade. Como a competição é mais do que qualquer coisa, comigo mesma e com os desafios aos quais me proponho, toda vez que me posiciono na largada, já me sinto uma vencedora (a Thelma escreveu belamente sobre isso no blog dela). Na linha de chegada, salvo um DNF que me aconteceu no meu primeiro Troféu Brasil por conta de um pneu furado, minha experiência também tem sido bem sucedida.
Mas nem só de trathlon vivemos nós e as derrotas podem acontecer em outros departamentos da vida. E serem muito mais penosas.
Eis que estou me havendo com uma derrota acachapante. Não foi nocaute. Foi por pontos. Veio aos poucos, se configurando um pouco a cada semana. A cada direto de direita que eu levava, ficava meio atordoada, tentava me recompor, mas percebia que a vitória estava ficando mais difícil.
Chega de tergiversar: a triste notícia é que meu filho mais velho levou pau na escola. Para qualquer mãe, isso já é duro, mas, pra mãe educadora, é o pior dos mundos.
Trata-se do meu mais velho, que está com 16 anos, idade em que os hormônios aceleram sua influência no comportamento na mesma medida em que os neurônios desaceleram em competência. Ano passado, no 1º do Ensino Médio, depois de empurrar com a barriga dois trimestres e meio, ele fez um certo esforço e passou por um triz, já na prorrogação. Na ocasião, fui muito clara: "Espero que você tenha aprendido a lição certa - não deixar as coisas se acumularem - e não a errada - 'passei um sufoco, mas no fim do tudo dá certo'." Pelo jeito, ele aprendeu a errada. Começou o ano "na flauta" e os problemas foram crescendo.
Desde abril - quando recebi o primeiro boletim e conversei com a coordenadora da escola dele - que venho apertando o cerco, tentando acompanhar mais de perto. E como é difícil.
O menino não tem nenhum problema, déficit de aprendizagem ou coisa que o valha. Não. Simplesmente não percebeu, ainda, que precisa começar a tomar as rédeas da própria vida. Na vida adulta, explicar pro chefe que você não terminou seu trabalho porque acabou o papel da impressora, ou porque alguém de sua equipe esqueceu de fazer uma parte ou porque a janela estava aberta e o vento levou...não cola!
Fiquei em cima - colocava um celular pra despertá-lo e ia com outro ao treino da madrugada, se ele não me ligasse na hora em que devia acordar eu parava no meio do treino pra tirá-lo da cama. Contratei um professor particular para dar umas aulas de reforço, limitei ainda mais os horários de computador e as saídas noturnas "para balada" foram pouquíssimas ao longo do ano. Não foi suficiente. Tivemos discussões horrorosas, brigas homéricas. Quando o trimestre foi terminando e as provas finais se aproximando, ele insistiu para que o deixasse fazer as coisas do seu jeito, que tudo iria dar certo. Recuei e parei de apertá-lo. Sentia a iminência do desastre e acreditava que quanto mais ele assumisse a responsabilidade pelos acontecimentos, melhor.
Não estou arrasada, mas estou triste. O custo deste erro de cálculo é alto. Por outro lado, só na derrota é possível perceber que a estratégia não funciona.
Se, de novo, ele passasse de ano estudando só para as provas finais, teria a confirmação de que, sim, é possível dar conta do recado na última hora. Embora me doa o coração, penso que esta era uma derrota necessária à aprendizagem de uma lição importante.
A lição não é só dele. É minha também. Estou pelejando para aprender a ser mãe de adolescente. Dar conta de criança, colocar limites, dizer "não", botar no colo, fazer as perguntas certas, calar quando convém...é, para mim, muito mais fácil com os três menores. Cansa, é verdade. Erro também, mas acerto muito mais vezes. Mas quando TODOS os limites são questionados, os "nãos" desobedecidos ostensivamente, as perguntas - provavelmente erradas - recebem respostas evasivas e o colo parece ser pequeno e inadequado pra acolher aquele "homão" no qual ele se transformou... a sensação é de que erro muito mais do que acerto.
Talvez este episódio venha a se transformar na pedra fundamental não apenas das mudanças dele com relação aos estudos, mas também numa nova maneira de a gente se relacionar. Quem sabe, daqui um pouco, este gostinho amargo dê lugar a sabores mais agradáveis. Tomara.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Jogos na Ilha - os nossos e os outros

Ilha do Sul
Domingo cedo meus garotos tinham jogos amistosos de futsal no Ilha do Sul. O Ilha é um dos primeiros condomínios construídos em São Paulo. São seis edifícios que compatilham um clube: piscinas, quadras cobertas e descobertas, restaurante, academia, cabelereiro, biblioteca, bancos. A região é nobre -  Alto de Pinheiros  -, e a clientela, como é possível deduzir, privilegiada.
Meus sogros têm um apartamento lá e os meus três menores o frequentam bastante, inclusive participando dos treinos de futsal.

Torneio
O pessoal responsável pelas atividades esportivas marcou uma espécie de torneio: os visitantes viriam com quatro equipes para fazer quatro jogos - desde sub-9 até sub-16 ou 17, não sei bem.
As crianças e jovens não eram de um clube, nem tampouco de outro condomínio ou escola particular. Os meninos eram do Educandário Dom Duarte, uma instituição de assistência social que fica próxima à Raposo Tavares.
De um lado, os nossos meninos, com suas chuteiras Nike, bem alimentados e branquinhos, do outro, os visitantes com seus tênis gastos, esbeltos e mulatos. Ali na Ilha, com aquela cor de pele e aqueles calçados, apenas as babás, os serventes, seguranças e faxineiras - ninguém que costume frequentar quadra para jogar. Quando alguém de pele mais escura pisa por ali é para passar um rodo, fazer um conserto, recolher os pertences que os clarinhos largaram esquecidos.

Sub 9
O primeiro jogo foi dos menores. Imediatamente pecebi que estava dividida. Era o time dos meus dois caçulas - mas como seria possível torcer contra aqueles outros pequenos?
O jogo começou e a diferença de atitude não poderia ser mais nítida. Os "nossos" eram os donos da casa, da bola, do mundo; pisavam leve, mas com firmeza. Os "outros" iam sedentos atrás da bola, cavavam o espaço; pisavam com receio, mas com sofreguidão. Os pequenos visitantes lutavam. Ao olhar suas feições me assustei. Pareciam tão mais velhos e maduros!
Logo de cara, um dos nossos (nossos???) faz um gol. Prendo a respíração. Não consigo comemorar. Em seguida, os outros (outros???)  empatam. Solto a respiração. E eles fazem mais um gol, e não consigo evitar que um sorriso aflore. Este tempo termina empatado.
O Ilha entra com um novo time, o placar é zerado e começa um novo jogo. Meus caçulas estão em campo. Ian, no gol. Balanço. Os visitantes perderam o receio. Vão com tudo pra cima dos donos da casa, da bola, do mundo. E fazem 5x0.  Ian fez boas defesas, mas não foi suficiente. Felix também não jogou mal. Os dois estão chateados. A derrota deles não me entristece. Sobreviverão a ela. Eles são vencedores, eles estão no time que é dono da casa, da bola, do mundo. Aos oito anos de idade. De algum modo, eles já intuem isso. E os meninos do Educandário?  Aos oito anos, eles já sabem. E, naquele jogo, estavam brigando pela bola, pela casa, pelo mundo. Aos oito anos, eles ainda acreditam.
Sem que pudesse controlar, senti que meu peito se apertava pelos nossos meninos, todos eles, os brancos, negros, mulatos. E queria que meus filhos entendessem. Não. Queria que eles sentissem. Que se vissem na pele daqueles meninos, com seus sonhos, seus cotidianos, seus medos. Queria que fossem atingidos por um raio de lucidez - impactante, assustador, instantâneo.

Sub 11
Terminada esta etapa, veio o jogo do sub 11. De novo, um filho no gol. De novo, o time do Ilha mais forte e mais seguro. O Dom Duarte sôfrego. Mas de cabeça baixa. Eles sabem. E, aos 11, já deixaram de acreditar. Todos, menos ela.
Ela. No meio do time, magrelinha, cabelos soltos e encaracolados, estava Ingrid. Ficava na defesa, como um xerife, dando ordens a todos os meninos, brigando por todas as bolas e fazendo os melhores lançamentos para área. Em determinado momento, pediu pra catar no gol. vestiu uma camisa de goleiro em que caberia ela e mais dois, e se posicionou, alerta. Defendeu uma, mas, em seguida, tomou. Foi um chute forte, difícil. O goleiro voltou, ela foi pro banco mas, no início do 2º tempo, pediu pra voltar à quadra, sem medo de errar.
O time da Ilha ganhou de 8x2. Ingrid, contudo, não perdeu a altivez. Ao final, fui cumprimentá-la e pedi pra tirar uma foto.
Martim, eu e Ingrid


Sorte e dever
O fato de meus filhos serem da Ilha e a Ingrid, não, é mero acaso. Eles não são melhores do que ela. Eu não sou melhor que a mãe dela. Saí dali pensando muito sobre isso. Nós temos sorte. Viver na Iha, não é um direito, é um privilégio. Agora, nós, os ilhéus temos sim, a dever de fazer o melhor, de usar esta oportunidade não em proveito próprio mas pelo bem comum.
Posso estar soando um pouco piegas, um pouco natalina... Mas será que nós, triatletas, tão individualistas, somos capazes disso? E mais... Será que somos capazes de educar nossos filhos sem que eles se achem os donos do mundo, mas sim responsáveis por ele?