segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Jogos na Ilha - os nossos e os outros

Ilha do Sul
Domingo cedo meus garotos tinham jogos amistosos de futsal no Ilha do Sul. O Ilha é um dos primeiros condomínios construídos em São Paulo. São seis edifícios que compatilham um clube: piscinas, quadras cobertas e descobertas, restaurante, academia, cabelereiro, biblioteca, bancos. A região é nobre -  Alto de Pinheiros  -, e a clientela, como é possível deduzir, privilegiada.
Meus sogros têm um apartamento lá e os meus três menores o frequentam bastante, inclusive participando dos treinos de futsal.

Torneio
O pessoal responsável pelas atividades esportivas marcou uma espécie de torneio: os visitantes viriam com quatro equipes para fazer quatro jogos - desde sub-9 até sub-16 ou 17, não sei bem.
As crianças e jovens não eram de um clube, nem tampouco de outro condomínio ou escola particular. Os meninos eram do Educandário Dom Duarte, uma instituição de assistência social que fica próxima à Raposo Tavares.
De um lado, os nossos meninos, com suas chuteiras Nike, bem alimentados e branquinhos, do outro, os visitantes com seus tênis gastos, esbeltos e mulatos. Ali na Ilha, com aquela cor de pele e aqueles calçados, apenas as babás, os serventes, seguranças e faxineiras - ninguém que costume frequentar quadra para jogar. Quando alguém de pele mais escura pisa por ali é para passar um rodo, fazer um conserto, recolher os pertences que os clarinhos largaram esquecidos.

Sub 9
O primeiro jogo foi dos menores. Imediatamente pecebi que estava dividida. Era o time dos meus dois caçulas - mas como seria possível torcer contra aqueles outros pequenos?
O jogo começou e a diferença de atitude não poderia ser mais nítida. Os "nossos" eram os donos da casa, da bola, do mundo; pisavam leve, mas com firmeza. Os "outros" iam sedentos atrás da bola, cavavam o espaço; pisavam com receio, mas com sofreguidão. Os pequenos visitantes lutavam. Ao olhar suas feições me assustei. Pareciam tão mais velhos e maduros!
Logo de cara, um dos nossos (nossos???) faz um gol. Prendo a respíração. Não consigo comemorar. Em seguida, os outros (outros???)  empatam. Solto a respiração. E eles fazem mais um gol, e não consigo evitar que um sorriso aflore. Este tempo termina empatado.
O Ilha entra com um novo time, o placar é zerado e começa um novo jogo. Meus caçulas estão em campo. Ian, no gol. Balanço. Os visitantes perderam o receio. Vão com tudo pra cima dos donos da casa, da bola, do mundo. E fazem 5x0.  Ian fez boas defesas, mas não foi suficiente. Felix também não jogou mal. Os dois estão chateados. A derrota deles não me entristece. Sobreviverão a ela. Eles são vencedores, eles estão no time que é dono da casa, da bola, do mundo. Aos oito anos de idade. De algum modo, eles já intuem isso. E os meninos do Educandário?  Aos oito anos, eles já sabem. E, naquele jogo, estavam brigando pela bola, pela casa, pelo mundo. Aos oito anos, eles ainda acreditam.
Sem que pudesse controlar, senti que meu peito se apertava pelos nossos meninos, todos eles, os brancos, negros, mulatos. E queria que meus filhos entendessem. Não. Queria que eles sentissem. Que se vissem na pele daqueles meninos, com seus sonhos, seus cotidianos, seus medos. Queria que fossem atingidos por um raio de lucidez - impactante, assustador, instantâneo.

Sub 11
Terminada esta etapa, veio o jogo do sub 11. De novo, um filho no gol. De novo, o time do Ilha mais forte e mais seguro. O Dom Duarte sôfrego. Mas de cabeça baixa. Eles sabem. E, aos 11, já deixaram de acreditar. Todos, menos ela.
Ela. No meio do time, magrelinha, cabelos soltos e encaracolados, estava Ingrid. Ficava na defesa, como um xerife, dando ordens a todos os meninos, brigando por todas as bolas e fazendo os melhores lançamentos para área. Em determinado momento, pediu pra catar no gol. vestiu uma camisa de goleiro em que caberia ela e mais dois, e se posicionou, alerta. Defendeu uma, mas, em seguida, tomou. Foi um chute forte, difícil. O goleiro voltou, ela foi pro banco mas, no início do 2º tempo, pediu pra voltar à quadra, sem medo de errar.
O time da Ilha ganhou de 8x2. Ingrid, contudo, não perdeu a altivez. Ao final, fui cumprimentá-la e pedi pra tirar uma foto.
Martim, eu e Ingrid


Sorte e dever
O fato de meus filhos serem da Ilha e a Ingrid, não, é mero acaso. Eles não são melhores do que ela. Eu não sou melhor que a mãe dela. Saí dali pensando muito sobre isso. Nós temos sorte. Viver na Iha, não é um direito, é um privilégio. Agora, nós, os ilhéus temos sim, a dever de fazer o melhor, de usar esta oportunidade não em proveito próprio mas pelo bem comum.
Posso estar soando um pouco piegas, um pouco natalina... Mas será que nós, triatletas, tão individualistas, somos capazes disso? E mais... Será que somos capazes de educar nossos filhos sem que eles se achem os donos do mundo, mas sim responsáveis por ele?

7 comentários:

  1. Clau, que texto!!! Se eu conseguir pensar em alguma coisa que possa acrescentar, volto a comentar, por hora digo apenas que é sensacional e vou torcer (e, de minha parte, me esforçar) para que sejamos capazes.

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  2. Há mais de 75 anos, meu pai jogava bola na Praça da Sé, no chão batido, com os moleques do bairro. Todos se misturavam. Não tinha classe social. Eram todos iguais, todos moleques descalços jogando futebol na rua. Quando fiz ginásio no colégio estadual, também não tinha muita diferença social. A única diferença importante, é que tinha os bons de bola e tinha a rapa, que eram os que sobravam na escolha dos times, e onde eu sempre me incluía. O futebol é um esporte muito democrático mesmo! Independente de origem, cor, idade, gênero, basta ter o dom e acreditar. E a chance de brotar um Ronaldinho Gaúcho, um Neymar entre a molecada do Educandário Dom Duarte, quase certamente é maior que entre os moradores da Ilha. Por que será? É uma pena que os campinhos de rua quase não existem mais, ficaram reduzidos a algumas quadras no Ibirapuera, Vila-Lobos e outros parques de SP. Ali na Vila Madalena tem duas quadras de rua bem legais, meio abandonadas, que sempre que posso vou com o Guga, meu caçula, bater uma bola. Ficam nos baixos da Fradique Coutinho, caminho da Vila Beatriz. Quase sempre encontramos alguns moleques jogando também, e nos juntamos a eles, e quase sempre eles nos dão um show de habilidade com a bola...

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  3. ótimo texto. Ainda que triste pelo verdadeiro abismo social evidenciado nos dois grupos, vejo nesses eventos ótimas oportunidades para educarmos nossas crianças. Assim eles crescerão com valores que nunca esquecerão.
    abraço,
    Sergio
    corredorfeliz.blogspot.com

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  4. O que falar novamente?Vou ser repetitivo,brilhante.Aprendo muito com vc Clau.Obrigado por me dar um pouco mais de cultura,cidadania,alegria.Beijos.

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  5. Genial, genial, genial.
    Eu, que fui criança nos anos 70, brinquei na rua e dividi carteira de escola com criança pobre.
    Hoje, me preocupo em não criar meus filhos em uma bolha.
    O grande lance é dar exemplo, falar somente não basta.
    Afinal, eles são crianças, todos eles, e ninguém é melhor que ninguém.
    Adorei e compartilho cada sentimento colocado no texto!

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  6. Clau,
    tem tudo a ver com o que falamos!!
    muito lindo o texto!!
    beijos
    Aninha

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  7. A referência ao Ilha me deu uma saudade. Qdo vivia no Brasil, morava nessas redondezas. Mais pra perto da Pça do Pôr do Sol. Uma região privilegiada, pelas tranquilidade da vizinhança, mas tb prvilegiada pela condição econômica dos seus habitantes.
    Estudei no Sta. Clara, que na época não tinha fama nenhuma. Na minha turma só tive um amigo negro. E estava lá pq era filho dos empregados de uma família rica do bairro. Lembro que tivemos uma menina filha de nordestinos que estudou com a gente. Não foi bem tratada pela turma e não apareceu no ano seguinte. Olho pra trás e sinto vergonha da turma pq não fizemos nada para que ela se sentisse parte do grupo.

    Minha esposa teve outra criação. Acho que pelo lado dela, estamos dando uma experiência de vida melhor. Assim espero.

    Agora me diz, como vou voltar a trabalhar depois de tantos fréshibéquis?

    Inté,
    Shigueo

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