terça-feira, 2 de abril de 2013

(Meu) Iron 2013 - IV

Uma semana depois

Não foi uma noite fácil. Passei a viver o dilema dor x náusea. Quanto mais usava morfina, menos dor mas, mais náusea. Escolha difícil.

A ingestão de qualquer coisa, até mesmo água, estava fora de cogitação.

Ao alvorecer, doutor Grohmann veio para a visita. Sua cara não está tão corada quanto 
ontem. Estou péssima, respondo.  E vomito praticamente na cara dele. Ele explica que esse mal estar todo é por causa da paralisia do intestino. E o intestino parou porque fizeram uma bela bagunça lá dentro. Pra voltar a funcionar, preciso começar a me mexer. Para ele andar, tenho de andar eu. E passar menos tempo deitada. 

Se é pra melhorar, vamos fazer o que tem de ser feito. Primeira coisa: tirar a sonda. Segunda: tomar um banho. 

Mesmo sentada naquela cadeira de rodas subaquática, um banho é sempre um banho. Dali, vou pra cadeira, em roupas civis, não mais aquela horrorosa vestimenta que nos deixa  com mais cara de doente.

Estamos apenas minha mãe e eu. Então um moço lindo entra e pede licença para facer la higienizaçón. Não perco a mania de conversadeira. Tento adivinhar de onde ele é e consigo na  segunda tentativa: Chile. Ele tem traços incas, lembra o filho da minha cunhada chilena, Nicolás. Ele nos conta que está fazendo faculdade. Medicina? Enfermagem? Ele sacode a cabeça e aponta para o prédio em construção à frente da nossa janela: engenharia. Puxa, mas você está num dos melhores hospitais do Brasil. Trabalhar aqui não lhe deu vontade de estudar medicina? Não. Não gosto de sangue. Trabajo acá porque necessito pagar a faculdade. 

Mais tarde, um jovem magro e agitado entra para me medicar. É o Kleber. Embora seja auxiliar de enfermagem tem uma determinação e uma firmeza nos gestos que fazem a enfermeira parecer insegura e desajeitada. Gosto dele instantaneamente. Ele conta que é PM. PM! Casado desde os 17, sem filhos, tem 23 anos. Seu pai, policial, morreu em serviço. E eles está estudando na Academia do Barro Branco. Quer ascender na carreira policial. Gosta de enfermagem, mas não a ponto de seguir carreira.

Adoro ouvir essas histórias, conhecer pessoas. A gente adora colocar todo mundo em caixinhas, bem discriminadas, com etiqueta "o faxineiro" "o policial" e aí percebe que os humanos são muito mais interessantes e complexos do que desconfia nossa vã limitação.

Tenho uma missão. Andar. Pego o Jack (suporte do soro) e ele, eu e minha mãe saímos para uma volta no andar. Este é o primeiro passo para o Ironman 2014, anuncia ela a uma enfermeira. Oxalá!

O corte repuxa, as costas doem, me sinto fraca, mas não importa. 

Na volta, me sento, exausta na cadeira. E minha energia parece começar a se esvair. Dali a pouco, Nilson, meu médico querido, cegonhão que trouxe todos os meus filhos ao mundo, aparece pra me ver. Ele faz elogios rasgados ao doutor Grohmann. A cirurgia foi um primor.
Ouço mais do que falo. 

Outro enfermeiro aparece. Minha veia está inflamada. É preciso trocar o acesso. Ele peleja para pegar a veia. Thelma chega no momento em que ele anuncia que minhas veias são bailarinas. Têm bom calibre, mas dançam.

Fica vários minutos me apertando e espetando. Até que resolver pegar a veia da dobra do braço - que não é muito aconselhável, mas é o que temos para o momento.
Não consigo conversar muito.

À tarde é plantão da Irene,  minha sogra, e  Chris Boulos e Nodette vêm me visitar. São ex-colegas de trabalho. Chris me traz uma maçã e mel - alimentos do ano novo judaico que eu sempre levava à  Fundação e distribuía, desejando a todos um ano doce. Para o seu recomeço, me diz. 

Vamos levar o Jack pra mais uma voltinha. Não consigo me lembrar de quase nada do que conversamos. Lembro apenas de me apoiar nos braços amigos e andar em câmera lenta, cruzando de vez em quando com alguém num pace semelhante.

No fim da tarde, meu estado piora novamente. Tenho dor e tenho náuseas. Não encontro conforto.  Sai Irene, entra minha tia Lia. Ela trouxe seu livro pra eu ver. Um delicioso relato sobre a conquista do Corinthians no Japão. Peço pra ela ler pra mim e sua leitura me acalma um pouco.

Ana Mesquita, a amiga escalada para passar a noite comigo chega quando estou em petição de miséria. Com ela um objeto lindo confeccionado por ela: uma mini escultura móbile de tsurus - símbolo de cura, japonês.  Tão lindo que uma pessoa no elevador pergunto a ela se não queria vende-lo.

Estou com muita dor. E Ana, com suas mãos de anjo, apoia minhas costas e seu calor e energia atenuam meu sofrimento. 

Minha tia me deixa nas mãos de Ana, e vai embora silenciosa. Sou uma péssima companhia neste momento. Mas Ana não se importa. 

Durante a noite, a qualquer movimento mais amplo meu, Ana levanta cabeça e me pergunta se estou bem, se preciso de alguma coisa. 
Ela zela por mim como fez minha mãe na noite anterior e meu marido na outra noite. 
Quando penso nisso, me comovo.

27 de fevereiro
Nado, corro, tomo banho, café e vou trabalhar, como em todos os outros dias.

Chego na minha sala, leio emails, respondo emails, falo ao telefone. E olho para o meu celular, esperando o telefonema do Daniel sobre meu exame.

Subo para o 15º andar para uma reunião. É um grupo grande. Falo para todos. Meu celular, que está no meu colo, toca. É minha mãe. Não atendo. Toca de novo, é minha irmã Silvia. Atendo e rapidamente aviso que não tenho noticias ainda, ligo assim que tiver. Minha mãe liga de novo. E de novo.

Saio da sala e atendo.

Temos consulta com o dr Grohmann hoje às duas horas. 
Ok, respondo. Você falou com o médico do exame? ela pergunta. 
Ainda não me ligou. 
E com o Roi (meu marido), você falou? 
Não. Por que? Deveria? Me espanto eu. 
Parece que o médico ligou pra ele... Diz ela. 
Assusto. 
Pra ele? Como assim? O médico deveria ligar pro o doutor Grohmann, não pra ele. 
Ah, não sei, diz ela evasiva. Mas acho que o Roi não quer falar com você. 
Aí eu surto. 
Como assim ele não quer falar comigo??? O pânico vai crescendo. 

Desligo. Ligo pro marido. Caixa postal. Ligo pro Daniel. Caixa postal. Ligo pro marido. Não atende. mando um torpedo pro Daniel. O que está acontecendo? Por que o médico ligou pro Roi?

Ligo pro Roi. Ele atende esquisito. 
Não posso falar com você agora.
Como assim "não pode"?
Onde você está?
Na Fundação. O médico ligou pra você?
Não posso falar agora.
Responde só isso: o mé-di-co li-gou pra vo-cê??
...
Responde!
VOCÊ QUER SABER? VOCÊ QUER MESMO SABER? Quem me ligou foi o Daniel. Ligou porque não teve coragem de ligar pra você. Ligou pra mim porque não sabia como te dizer que você está com um tumor no rim, tumor. E tem também umas coisas estranhas no fígado. É isso, tá?! É isso!

Desligo.

Estou só, sentada no degrau de granilite gelado entre o 14º e o 15º andar.
Choro.
Ligo pra minha irmã. 
Fodeu.
Que foi.
Um tumor no rim.
Calma, irma. Vai dar tudo certo. Eu estou com você. Eu te dou meu rim, se precisar.
Choramos as duas.

Vou pra minha sala. Passo pela Celina, minha secretária, que imediatamente percebe que há algo muito errado.  Ela tenta me acalmar e chora comigo. Vou embora agora, digo. Ela se oferece pra me acompanhar. Querida.

O celular não pára de tocar. É o marido, aos berros, desesperado. Não posso com berros àquela altura. Não atendo. Mas ele não desiste. Quer me explicar que não era assim que ia me dar a notícia, que estava indo encontrar comigo, falar pessoalmente, mas eu o pressionei e então ele falou, mas não queria ter falado daquele jeito. Ok, estou indo pra casa, digo em voz baixa. Estou indo pra lá, então, ele diz.

Ligo pra minha mãe, peço pra que ela e meu pai me encontrem em casa.
Vou embora, procurando o chão que sumiu sob meus pés.
(Continua)




2 comentários:

  1. Nossa que ten-so! Fico me imaginando na posição do maridón. Muito barra.

    Fico impressionado como vc consegue se lembrar de tantos detalhes, dos diálogos. Memória de elefante mesmo.

    Agora vou lá comer o que sobrou do ovo de páscoa para desestressar antes de ler o próximo capítulo do seu Madruga, digo, do seu Iron.

    ResponderExcluir

Sua opinião é muito importante para nós. Escreva-a! Caso queira uma resposta, escreva para clauarat@gmail.com